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quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

a plataforma

ira


Entrei na estação às oito e cinquenta e cinco da manhã. O trem chegou logo depois, às nove, em ponto. Estava cheio, mas não lotado. Entrei no primeiro vagão. Quase nunca faço isso, mas como neste dia estava com pressa, o primeiro vagão me deixaria mais próximo da saída na Central do Brasil.

Se ambientar a um vagão de trem possui seus mistérios. É como se você entrasse em um esconderijo, ou na nova casa de um novíssimo amigo. No começo se estranha, não se quer estar ali, há um enorme desconforto, aqueles rostos, aquele odor, as pessoas desconhecidas, mas em instantes se familiariza, em duas ou três estações já se está em “casa”. Naquele dia não foi diferente. Assim que escolhi o canto que em ficaria por volta de cinqüenta minutos de viagem, comecei a perceber as pessoas em minha volta. Uma senhora enrugada com cara de evangélica, uma moça de cabelos crespos com cara de empregada doméstica, uma criança em pé com sua mãe também em pé, um rapaz branco com cara de quem olha outras pessoas tentando advinhar quem são aquelas pessoas para quem ele olha, mesmo sabendo que as pessoas o olham pensando quase a mesma coisa que ele pensa advinhar.

Havia um grupo de jovens, mais ou menos em cinco, ou seis. Um deles usava a camisa do Flamengo. Eu não sou Flamengo. Jovens negros, mulatos e mestiços, não haviam brancos, ou brancos tão brancos quanto o rapaz branco que olhava as pessoas tentando advinhar quem elas eram. Falavam alto, gritavam gírias. Havia um incomodo geral naquela parte inicial do primeiro vagão das nove horas. Se comunicavam, os jovens, quase que em um dialeto, não dava para entender direito o que diziam. Riam, brincavam sobre quem tinha ido a tal baile, onde o bicho pegava, onde o couro comia. Comecei a ficar com medo. As pessoas naquela parte do vagão também estavam. A senhora com rosto enrugado, a moça de cabelos crespos, o rapaz branco, a mãe em pé com a criança em pé, porém a criança em pé não tinha medo, não sabia muito bem o porquê ter medo.

Uma parte do grupo se espalhava recostado na parede que fazia divisa com a cabine do maquinista. Alguns sentados, alguns em pé. E o medo contido daquelas pessoas. Porém incontido em seus olhos, em suas expressões. Os jovens brincavam, se sacanavam e os outros passageiros com as iris e feições de descontentamento, de "vou trabalhar e essa algazarra". Porém havia um detalhe interessante nesse grupo... quase todos carregavam vassouras amarradas umas às outras, como um enorme pacote, e que tomavam grande espaço do primeiro vagão do trem das nove horas. A composição estava cheia de pessoas, de sentimentos e de vassouras. Nem todos exatamente nesta mesma ordem.

Quase que fluidamente a sensação de desconforto e medo com aqueles jovens foi se dissipando pelo vagão. O rosto enrugado da senhora continuou enrugado, mas sem aquele pesar de chateação. Os cabelos crespos da suposta empregada doméstica continuaram onde estavam, mas um sorriso em seus lábios começou a brotar ao ouvir as histórias dos garotos que iriam ao Centro vender suas vassouras. As vassouras tiveram um efeito amenizador impressionante. Não sei porque as mesmas vassouras não clareiam o medo histórico pelas bruxas. Cheguei também a sorrir das piadas do rapaz com a camisa do Flamengo, apesar de não gostar do Flamengo. O ar pesado e tenso dava lugar a uma descontração que já contagiava o primeiro vagão do trem das nove horas da manhã.

Engenho de Dentro. Metade do trajeto já tinha sido percorrido, outra metade faltava para o despejamento de todas as pessoas ávidas por chegarem aos seus trabalhos. Os jovens vendedores de vassouras continuavam a contar suas histórias. Porém algo aconteceu. Um deles, talvez o mais velho, e que estava sentado no chão do vagão e vestia a camisa do Flamengo, puxou um cigarro e o acendeu. Obviamente que um novo desconforto ocorreu entre os passagerios, inclusive comigo, mas o próprio aferrecimento do medo inicial acabou por tonar a cobrança por fumar em um lugar fechado um tanto amena. O jovem vendedor de vassouras com a camisa do Flamengo poderia fumar naquele local. Ninguém iria tomar satisfações por aquele ato hostil. Não mais. Tudo ficaria na mesma, até o final da viagem, na mesma tranquilidade recém conquistada.

Mas em um repente uma voz brava e diretiva bradou: "-Apaga esse cigarro!""-Você está vendo alguém fumando dentro do trem?". Todos olharam para a direção de onde vinha a voz. Um homem. Um homem branco, tão branco quanto o jovem branco que tentava advinhar quem eram as pessoas pelas feições. Só que este homem era mais velho do que o jovem que ali perto estava. O homem que acabara de acabar com a recém tranquilidade conquistada era de meia-idade, talvez ciquenta e três anos, cinquenta e quatro... Cabelos ondulados grisalhos, rosto conservado. Usava uma jaqueta de couro preta, relógio e cordão de ouro. Não sou ourives, mas tenho certeza que eram de ouro. Ouro do tipo 23 quilates, estilo bicheiro.

No momento em que aquele homem branco de meia idade gritou, todos olharam. E viram que o mesmo portava uma arma de fogo, uma arma alojada dentro daquela jaqueta de couro preta. Seu grito soou ao jovem branco observador como um "-Se você não apagar essa porra desse cigarro, eu atiro!". O medo voltava a se instaurar naquele vagão. Mas era uma medo diferente. Era um medo travestido de raiva. Uma raiva confusa. Raiva do homem branco, do jovem negro, do cigarro, das vassouras ou da camisa do Flamengo? O medo voltou, o medo não... o ódio. O rapaz negro com a camisa do Flamengo apagou o cigarro e pediu desculpas. Continuou a brincar com os outros rapazes uma brincadeira envergonhada. Os passageiros olhavam para o homem branco com olhares de reprovação. A senhora enrugada, a moça de cabelos crespos, a mãe e a filha em pé, o rapaz branco. Todos. Todos sabiam que ali dentro havia uma arma e havia um ódio, ou ódios. Mas por incrível que pareça a principal raiva, ou medo, não era da arma em si e sim do homem branco de meia idade e seu senso de justiça injusto.

O homem branco de meia idade com cordão de ouro falava com alguém, no rádio de seu celular, que estava tudo tranquilo, que a situação já estava "controlada". Ninguém sabia quem era aquele homem, não havia uniforme, distintivo, identificação, só havia uma arma dentro da jaqueta de couro. "Só pode ser policial", pensou o jovem branco que tentava advinhar as pessoas pelas feições e pelas roupas. Poderia ser um segurança a paisana da empresa exploradora dos trens urbanos. Poderia, mas ninguém sabia. Ninguém mais. Porque ali havia uma arma de fogo e um ódio, ou ódios. Só se sabia que aquele homem branco não vendia vassouras e não vestia a camisa do Flamengo, mas talvez fosse Flamengo.

A viagem continou, intranquila, até o seu final. Os jovens vendedores de vassouras brincando envergonhadamente, os passageiros olhando para o homem branco, o homem branco não olhando para ninguém, só espelhando seu senso de ordem imposto por uma arma de fogo. O medo e o ódio estavam estampados nas rugas do rosto, no branco do olho, no fiapo da vassoura, na unha do pé, no redomoinho do cabelo. Estavam.

O trem chegou. Todos desembarcaram ao mesmo tempo. Para as saídas da estação. Na mesma plataforma caminhavam o jovem com a camisa do Flamengo, a velha com rugas no rosto, a mãe e a filha, a moça de cabelos crespos, o jovem observador, o homem branco armado. Tudo caminhava na mesma plataforma.

Tudo e todos.


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Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons.

2 comentários:

jorge disse...

qual é o problema com a camisa do hexacampeão brasileiro?

Tathiana Treuffar disse...

Gostei muito como você vai descrevendo a cena. E as repetições "A senhora enrugada, a moça de cabelos crespos, a mãe e a filha em pé...", deram um efeito muito legal!

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O autor

Vinícius Silva é poeta, escritor e professor, não necessariamente nesta mesma ordem. Doutor em planejamento urbano pelo IPPUR/UFRJ, cientista social e mestre em sociologia e antropologia formado também pela UFRJ. Foi professor da UFJF, da FAEDUC (Faculdade de Duque de Caxias), da Rede Estadual do Estado do Rio de Janeiro (SEEDUC) e atualmente é professor efetivo em sociologia do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Criou e administra o Blog PALAVRAS SOBRE QUALQUER COISA desde 2007, e em 2011 lançou o livro de mesmo nome pela Editora Multifoco. Possui o espaço literário "Palavras, Películas e Cidades" na plataforma Obvious Lounge. Já trabalhou em projetos de garantia de direitos humanos em ONG's como ISER, Instituto Promundo e Projeto Legal. Nascido em Nova Iguaçu, criado em Mesquita, morador de Belford Roxo. Lançou em 2015, pela Editora Kazuá, seu segundo livro de poesias: (in)contidos. Defensor e crítico do território conhecido como Baixada Fluminense.

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