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sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Os cinco ciclos da morte



Faz pouco tempo atrás a Morte sentou-se ao meu lado e sussurrou seu verbo mudo em meus ouvidos quentes. Seus lábios murchos e ressequidos pela eternidade não vinham brindar minha alma com sua passagem fria, nebulosa e desconhecida, porém traziam surdamente as novas do que me esperava pela frente, o avançar do aprendizado amargo que ela prometeu a todos nós, a todos.

Primeiro e sorrateiramente ela iniciou seus trabalhos levando o bailarino de ébano. Amigo recente, à época, que me tratava como mestre, e dizia sempre [mestre] [mestre] com o maior sorriso do mundo. Nunca conheci alguém com sorriso tão grande e tão bonito. Depois de meu vô Antonio sorrir em seu estado final, nunca tinha visto outro alguém sorrir em sua esquife de tal maneira. Douglas sorria um sorriso discreto, mas que foi notado por todos que ali dele se despediam. Acho que por Douglas chorei uma das minhas lágrimas mais doídas. Foi quando sua mãe contou o hino cristão que ela disse ser de sua preferência quando criança. Posso esquecer-lembrar-esquecer da melodia neste exato momento. Exato. Aquela melodia entoada por alguns dentro da nave fez a água salina de meus olhos jorrar pelos pêlos de minha barba espessa. Tenho certeza que Douglas nutria amores pela mulher que hoje chamo minha. Nunca tive raivas ou rancores por isso. Como odiar quem ama quem você ama? Ah dançarino do sorriso largo, que saudades tenho de ti.   

Um ciclo de quatro estações depois Ela veio como um repente, dizendo-sem-falar que não estava para brincadeira. E foi buscar, então, espanto distante, familiar, mas distante. Um primo. Meu primo. Meu primo que não tivera contato próximo comigo, que não fora criado entre os meus e nem eu entre os dele, mas ainda sim primo, sangue e moléculas. O mais interessante nesta relação distante-próxima-distante eram os corpos. Impossível notar distância entre jovens tão parecidos, com semblantes tão semelhantes. Rostos, cores, tamanhos, olhos, cabelos, corpos. São parentes? Sim. Sim. Gilmar se foi. Rápido, de supetão. E não deu tempo. Não houve tempo para que eu dissesse [primo, me perdoe, não nos conhecemos muito, mas... quer ser meu amigo?] Foi-se. Se foi. E chorei também distante, ao léu de sua lápide, chorei por seu irmão, também meu primo, que chorava perto. Chorei ao chegar à porta de casa. Dentro do automóvel. Chorei. Chorei por Gilmar. Chorei por seu irmão também meu primo Gilsomar. Chorei por mim.  

Mas quando Ela prometeu que [dessa lição eu não esqueceria] não brincava em seu juramento, mesmo que de tal eu sequer suspeitasse. Mais um ciclo. Uma manhã em minha nova casa, em minha nova vida, um telefonema. Meu pai. E a pergunta por mim se repetiu repetiu [Quem?] [Quem?] [Quem?]. Não, não, meu tio não. Mazinho, meu sim-não-sangue-tio-sim morria por um coração que decidira parar de bater. Naquele instante já sabia da dor que enfrentaria. Mazinho, tio meu, passou anos afastado de mim, de meu irmão, por motivos e rusgas familiares que nós crianças não temos nenhuma culpa ou vontade. Da frieza dessa relação engessada pelo tempo e por mágoas emprestadas, surgia calor e amizade já nas vidas adultas. Ah santas películas italianas que nos aproximaram. Ah santa nova-tecnologia-nova que me fez um pouco mais conhecer meu tio, meu tio Mazinho. Ele se foi. Se foi no meio do caminho. [Tio eu não havia terminado de te ensinar como baixar todos os filmes. Volta. Volta!] Em sua despedida eu não chorei. Não consegui. Bastava as lágrimas de meus primos, sua dor presente. Minhas lágrimas vieram à noite, à cama, no colo da mulher que decidiu me acolher e amar.  

E quem disse que terminaria? O título diz [cinco]. Dessa vez Ela, a Morte, pareceu me deixar de entre aviso. Cesar, meu padrinho-padrinho-amor, carregava um coração valente e doente. Sabia de seu estado. Sabia da fragilidade de seu corpo. E dessa vez pensei [eh Morte, já saquei a sua, vou te antecipar, vou me despedir]. E assim fui fazer sem dizer, só em pensamento e sentimento. Visitei-o antes. Beijei-o no rosto. Disse [eu te amo]. Cheirei seu sempre bom perfume. Abracei-o. Fiz e refiz. E então, um dia, no meio do labor, o telefonema grave de minha mãe avisou [Cesar se foi]. Fui forte. Sabia que Ela o espreitava e me preparei antes [Danadinha, dessa vez você não me pega]. Em sua despedida chorei contidamente ao beijar seu rosto pela última vez. Como gostava de beijar meu padrinho-padrinho-amor na bochecha, com estalo. Cheguei em casa forte, forte. Mentira! Ao banho, desabei. Nunca passei noite-dor tão dor como aquela noite-dor que passei. Dormir não podia. Gritar também não. Então escrevi. Escrevi texto de despedida mais triste que já pude escrever. Não, não é este aqui, apesar das lágrimas que vocês não podem ver e saber, mas que já rolaram e rolam no exato presente que já se foi. Agora. Se foi. E pela heresia de tentar se fazer de forte diante Dela, a fúnebre Morte presenteou-me com feridas na pele que nunca saram, a me perseguir e lembrar que dor é para ser sofrida e sentida, sempre!     

Mas tudo que começa-termina depois termina-começa. O último ciclo ainda viria. Dessa vez como lição final, talvez. Morte danada, feridas abertas. Quem mais ela poderia espreitar? Levar? Meu último um/quarto formador! Óbvio. Meu vô Francisco Trajano. Meu vô Francisco foi o vô mais distante, até porque só tive um próximo, pois minhas vós se foram há muito tempo. A Danada estava a brincar com outros nesta época. Minhas a[vós] se foram e eu era muito muito menino. Meu vô Chico viveu sua vida como bem quis. Bebeu. Brincou. Gastou. Jogou. Nunca me incomodou. Porém nunca foi [vô]. Mas era meu vô Chico, o Trajano. Seu cérebro já havia sangrado algumas vezes antes, e sua agonia em cama arrastava-se como agonia-vida-agonia. Neste caso parecia que a Velha-sem-dó vinha finalizar a agonia-vida-agonia que o velho Trajano já apontava não mais aguentar. Sim, Ela o embalou. Fui ao encontro de meu pai confortar a perda de seu pai. E na discreta despedida, chorei ao ouvir o canto católico que ninava seu velho corpo, como uma ladainha a lembrar o velho Nordeste de sua origem. Ciclo fechado! Mas [Não] [Não] [Não]. Ela não me deixaria assim tão tranquilamente. Uma estação depois, como se me lembrasse [sem dor não vale] levou Dona Fátima, mãe de meu amigo-irmão-amigo Well. Com requintes de crueldade levou Dona Fátima em um momento que não poderia estar junto de meu amigo-irmão-amigo para confortá-lo no momento mais difícil de sua vida. Obrigou-me a chorar lágrimas em terra distante e a carregar a culpa eterna da ausência.

Agora sim, os ciclos parecem que se encerraram. Mas por que causa a Medonha viria me passar lição tão dura, tão longa assim? E como mágica divinal ouço sua voz inaudível entre tímpanos e cera amarelada. Sim. Agora. Ouvem? [Tolo! Visito a todos sem distinção. Passo minhas lições para que aprendam que não há escapatória] [Do... do... na, Do... na Morte, posso fazer uma pergunta?] [Sim, faça, logo] [O que aprendi com estas lições tão duras?] [Oras, tolo menino, aprendeste que deves viver e ponto. Ainda receberás muitos recados e lições, mas quando tua hora chegar... Sento-me ao teu lado e carrego tua alma sem avisar!].


Para Caio Fernando Abreu.


Vinícius Silva é poeta, escritor e professor, não necessariamente nesta mesma ordem. Doutor em planejamento urbano pelo IPPUR/UFRJ, cientista social e mestre em sociologia e antropologia formado também pela UFRJ. Foi professor da UFJF, da FAEDUC (Faculdade de Duque de Caxias), da Rede Estadual do Estado do Rio de Janeiro (SEEDUC) e atualmente é professor efetivo em sociologia do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Criou e administra o Blog PALAVRAS SOBRE QUALQUER COISA desde 2007, e em 2011 lançou o livro de mesmo nome pela Editora Multifoco. Já trabalhou em projetos de garantia de direitos humanos em ONG's como ISER, Instituto Promundo e Projeto Legal. Nascido em Nova Iguaçu, criado em Mesquita, morador de Belford Roxo. Defensor e crítico do território conhecido como Baixada Fluminense.

Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons.

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Vinícius Silva é poeta, escritor e professor, não necessariamente nesta mesma ordem. Doutor em planejamento urbano pelo IPPUR/UFRJ, cientista social e mestre em sociologia e antropologia formado também pela UFRJ. Foi professor da UFJF, da FAEDUC (Faculdade de Duque de Caxias), da Rede Estadual do Estado do Rio de Janeiro (SEEDUC) e atualmente é professor efetivo em sociologia do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Criou e administra o Blog PALAVRAS SOBRE QUALQUER COISA desde 2007, e em 2011 lançou o livro de mesmo nome pela Editora Multifoco. Possui o espaço literário "Palavras, Películas e Cidades" na plataforma Obvious Lounge. Já trabalhou em projetos de garantia de direitos humanos em ONG's como ISER, Instituto Promundo e Projeto Legal. Nascido em Nova Iguaçu, criado em Mesquita, morador de Belford Roxo. Lançou em 2015, pela Editora Kazuá, seu segundo livro de poesias: (in)contidos. Defensor e crítico do território conhecido como Baixada Fluminense.

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