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quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

O ódio pela televisão e o ódio pela televisão?




Passei toda minha infância existindo durante os anos 1980. Como todo menino de classe média baixa (às vezes baixíssima), e ainda vivedor e morador da Baixada Fluminense, minhas principais brincadeiras e diversões eram obviamente me reunir nas calçadas com todos os primos e crianças vizinhas, jogar bola no campinho de terra batida e... ver televisão! Os videogames apareceriam depois. Um Atari e muito tempo depois um MasterSystem. Mas sim, a televisão era uma grande diversão.

A memória afetiva é grande, pois para mim são ainda muito claras as imagens de meus pais à noite vendo novelas e filmes, e tentando me proibir de acompanhá-los porque já fazia tarde da noite. Hoje sou um notívago às vezes convicto, às vezes envergonhado, até porque sofro muito fisicamente por esta situação. Mas que eles tentaram me tirar esse hábito, ah tentaram! A culpa é minha mesmo, mas o prazer também. Tínhamos um televisor Telefunken à válvula, isso quer dizer que quando o cristal esquentava a imagem ficava igual à tv com estática. O técnico frequentava minha casa quase que mensalmente, virou inclusive amigo da família. Até que depois de muitos anos ele se negou a consertar a antiga Telefunken e disse para minha mãe "A senhora tem que comprar uma televisão nova, essa aqui eu não conserto mais".   

E as memórias são facilmente identificáveis. Iremos a elas: Superman, o filme (I e II), Superman III, Roque Santeiro, Memórias de um Gigolô, Guerra nas Estrelas (todos os três), Rambo I e II, E a gata comeu, Plunct Plact Zum, A arca de Noé, Bozo (Papai Papudo: Que horas são amiguinhos? Cinco e sessenta!), os Trapalhões (todos), Clube da Criança, o Show da Xuxa, Ultraman, Spectreman, O rapto do menino dourado, Tira da pesada, Loucademia de Polícia, Chacrinha, Programa Silvio Santos, desenhos da Rede Manchete, e muito mais.

Obviamente que estou falando de tv's abertas que concentravam-se nas emissoras Globo, SBT, Manchete, TVE, Record (que vivia grande decadência à época), Bandeirantes. Depois surgiu a CNT e parava por aí

Como criança e pré-adolescente não entendia nada sobre poder e mídia, política e concessões públicas, só sei que gostava de ver televisão, e muito, pois era uma de minhas melhores diversões. O primeiro contato mais político que tive iniciou- se com a campanha para as primeiras eleições diretas presidenciais, já no período democrático em 1989. Também é clara a forte imagem da morte de Tancredo Neves, o caixão um pouco suspenso e seu rosto aparecendo pelo vidro, minha mãe chorando, Fafá de Belém chorando ao cantar o hino nacional na televisão, "Coração de estudante" tocando sem parar... imagens ainda muito fortes.

Meu avô Tuninho era um fã empedernido de Leonel de Moura Brizola. Vibrava com os discursos eloquentes do político que à época tornou-se governador do Estado do Rio de Janeiro. Política mesmo eu tive contato pela primeira vez com o direito de resposta conseguido por Brizola no já histórico momento em que Cid Moreira, o rosto da Rede Globo à época, leu com sua voz grave o texto não muito elogioso a Roberto Marinho e sua empresa de comunicação. Sim, eu assisti Cid Moreira ler tal texto ao vivo.  

Os anos se passaram, os estudos e a busca cada vez maior por informação mostrou-me o papel preponderante dos conglomerados de mídia no Golpe de 1964. As produtoras de "sonhos" também ajudaram a produzir anos de mais puro terror político-militar em nosso país. A Rede Globo de Televisão, criada em 1965, foi uma das grandes apoiadoras e beneficiárias do golpe militar, e de sua manutenção também. "Muito além do cidadão Kane" documentário político, e quase maldito, contra a Rede Globo e facilmente encontrável no youtube explicita uma visão pouco aberta à massa sobre como este grande conglomerado empresarial obteve sucesso nos anos de chumbo. Vale também lembrar, como uma pequena pílula vermelha, a fala do ditador Garrastazu Médici, que em um determinado momento disse “Sinto-me feliz todas as noites quando ligo a televisão para assistir ao jornal. Enquanto as notícias dão conta de greves, agitações, atentados e conflitos em várias partes do mundo, o Brasil marcha em paz, rumo ao desenvolvimento. É como se eu tomasse um tranquilizante após um dia de trabalho”1.

Vale lembrar também a omissão da Rede Globo na campanha das Diretas Já!, a associação com a Proconsult na divulgação de informações falsas sobre as eleições para o governo do Estado do Rio de Janeiro no início dos anos 80 e em que Brizola foi eleito, a produção do programa "O caçador de marajás" vinculado no Globo Repórter e a manipulação da edição do debate entre Lula e Collor para o favorecimento do segundo (que ganhou, levou, mas não ficou, em movimento também orquestrado pela mídia para sua derrubada por efetivas denúncias de corrupção) nas já mencionadas eleições de 1989.

Nos anos 1990, com a vitória do neoliberalismo e de Fernando Henrique Cardoso e o PSDB, seu papel resumiu-se a tentar não explicitar demais, juntos com outras empresas de mídia, os muitos escândalos de corrupção estouradas à época. 

Nos dias atuais Rede Globo continua, através de seu jornalismo e em todos os canais e empresas que lhe pertencem, de seus articulistas a editorais no jornal O GLOBO, mantendo e expandindo seu padrão conservador, tanto em suas colocações sobre política quanto em suas percepções econômicas, sempre atuando em desacreditar e criminalizar qualquer movimento social que lute por mais democracia popular direta, ou propostas de mais democracia nos meios de comunicação. Já se declarou contrária à taxação de mais impostos a grandes fortunas e à regulação da mídia, por motivos mais do que óbvios.

Mas então como se relacionar com questões tão pertinentes e claras, assim como contrastantes e quase que contraditórias? Em que uma empresa nacional (há relatos de que dinheiro da Time/ Warner tenha entrado para a expansão da Rede Globo no período da ditadura, apesar de ser limitado constitucionalmente o investimento estrangeiro a empresas de comunicação nacionais) gera milhares de empregos, desenvolve conteúdos audiovisuais nacionais premiados e ressaltados mundialmente e detém ainda, mas em franca decadência, altos índices de audiência. Porém e ao mesmo tempo mantém uma relação tão intrínseca com a manutenção da mesma elite econômica que domina o país há décadas e atua sempre de forma contrária a qualquer tentativa de empoderamento popular.

Acredito não existir resposta fácil ou simplista. De fato há inúmeras nuances a serem observadas nesta complexa dialética. Se no alto comando administrativo e editorial temos a aproximação com o conservadorismo político e o liberalismo econômico, a Rede Globo (especificamente) notabilizou-se, em muitos momentos, na diversidade de seus quadros em sua produção artística. Comunistas históricos como Dias Gomes, Oduvaldo Vianna Filho, Jorge Amado, entre muitos outros, participaram decisivamente como produtores de conteúdo da empresa, por mais que não tivessem total liberdade sobre o que era produzido, mas qual profissional de grandes conglomerados empresariais tem tal liberdade, inclusive nos dias atuais?

Porém a questão que se coloca e que considero extremamente pertinente no momento atual é: Deve-se demonizar aprioristicamente qualquer produto confeccionado pela Rede Globo ou qualquer outra grande empresa tradicional de mídia no Brasil? E mais uma vez repito a resposta já dada: Não há respostas prontas. Porém é pertinente chamar a atenção a dois casos recentes e de grande repercussão.

O primeiro foi o grande frisson causado pelas críticas contundentes de movimentos feministas e negros contra a mini-série O Sexo e as Nega, escrito e dirigido por Miguel Falabella. A série foi livremente inspirada em Sex and The City, onde bem sucedidas mulheres brancas novaiorquinas relatam suas experiências afetivas e sexuais na contemporaneidade.    

Logo de cara considero que exprimir a analogia foi o primeiro grande erro estratégico de lançamento e apresentação da série, pois as mulheres retratadas no seriado nacional são negras, pobres, moradoras de favelas e comunidades pobres. Essa associação direta entre realidades efetivamente diferentes, apesar da contemporaneidade vivida por todas, seria prato cheio para a percepção coletiva de representação da mulher-negra-pobre brasileira através dos esteriótipos recorrentes e persistentes em nossa sociedade e história. O título do seriado só corrobora esta percepção e as críticas à analogia inicial e ao título encontram eco sim na reprodução destes esteriótipos. Mas para mim a questão principal em relação às críticas desferidas por movimentos feministas e negros, e a grande maioria da mídia independente e de esquerda, é: O seriado foi duramente criticado e taxado de racista antes mesmo de ser visto! 

E como enunciado logo acima, as primeiras críticas podem ser consideradas pertinentes dentro do amplo contexto histórico e reprodutor de desigualdades materiais e simbólicas que vivemos em nosso país. Mas efetivamente é possível classificar um conteúdo de racista antes mesmo de ser visto ou consumido? E foi exatamente isto que vimos neste caso. Se por acaso durante a exibição ou ao final da série a mesma fosse indiretamente e simbolicamente racista, as críticas deveriam e devem (caso efetivamente isto se confirme) ser feitas, mas antes? Se odeia o Paulo Coelho antes de se ler pelo menos um livro dele? No Brasil, sim. Acredito que em outras partes do mundo também.

Neste caso o mais interessante foi quando o deputado federal Jean Wyllys declarou não considerar o seriado O Sexo e as Nega e nem Miguel Falabella racistas. Bastou para ser chamado de "afroconveniente". E não, não estou aqui para fazer campanha para o deputado, mas é reconhecida sua militância a favor dos direitos LGBT, das religiões afrobrasileiras, dos direitos de mulheres e negros. Porém parece que infelizmente a esquerda, representada não somente por partidos políticos mas por movimentos sociais e representações da sociedade civil, ainda vive sob o auspício da pauta única e coordenada, onde mesmo que se defenda os direitos humanos de maneira irrestrita, fugir da pauta por questões filosóficas e particulares irromperá ao que o pior a mesma esquerda ainda produz, o patrulhamento. Se críticas a algum aspecto sobre cotas fizer, racista será. Se reflexões sobre a separação física entre sexos realizar, como por exemplo em vagões de metrôs e trens, misógino será. Se programas da Rede Globo elogiar... alienado, misógino, racista, vendido, reacionário e todos estes não muito positivos adjetivos aglutinará. Não estou elogiando O Sexo e as Nega pois sequer o assisti. Posso falar do "mal gosto" do título ou da infelicidade da analogia, mas classificar algo de racista antes de mesmo de assisti-lo... jamais.   

Neste momento já posso sentir a acidez da bílis a ser produzida em alguns sistemas digestivos ao lerem estas minhas palavras, mas a estes só posso dizer e escrever: o antiácido de minha consciência me livra de qualquer temor de patrulhamento ou dirigismo, mesmo que seja de gente bacana e que luta por mais direitos humanos, assim como eu.

Mas para tornar ainda mais completa e complexa nossa digressão sobre ódios e ódios pela televisão, trago a enorme polêmica do especial sobre Tim Maia, também produzido pela Rede Globo. Especial baseado em filme lançado em 2014, este baseado em biografia realizada por Nelson Motta. De antemão o próprio filme já havia sofrido críticas por tornar um tanto quanto unidimensional um artista do talento e da complexidade de Tim, mas uma obra cinematográfica sempre será um recorte escolhido sobre uma obra que pode ser mais aprofundada, como no caso de uma biografia em formato literário.

O que mais chama atenção neste caso é que Tim Maia na parte final de sua vida e carreira tornou-se um grande antagonista da Rede Globo, e principalmente do jornal O GLOBO. Antagonismo que pode ser visto em entrevistas gravadas e dadas por Tim, onde o mesmo relatava que fora vetado em participar de programas musicais na empresa do Jardim Botânico. No livro de Nelson Motta e no filme de Mauro Lima, Roberto Carlos aparece menosprezando e humilhando Tim Maia, este em começo de carreira. No especial exibido pela Rede Globo, com trechos do filme, relatos de famosos e novas cenas gravadas com um dos atores que representam o cantor no filme, recolocam Roberto Carlos como um "amigo" que lançou "o gordo mais querido do Brasil". O Nelson Motta do seriado da Globo desdiz o Nelson Motta que escreveu a biografia. O filho de Tim Maia declarou que tanto no filme quanto na série seu pai "não merecia algo tão tendencioso". Mas como então um artista tão crítico da Rede Globo torna-se produto a ser explorado e vendido por tal emissora, esta a esconder as fortes críticas feitas à mesma pelo próprio retratado. Só pode haver uma explicação: Tim Maia foi e é um artista extremamente popular. E ser popular e ter o amor do povo invariavelmente provoca audiência, algo que anda escasso nas tradicionais mídias nacionais.

E esses dois exemplos que trouxe, atrelados à minha história afetiva e crítica em relação à televisão brasileira, tendo como base de observação a Rede Globo de Televisão, servem para tornar ainda mais complexa, mas também mais ilustrada a afirmação e a pergunta: O ódio pela televisão ou o ódio pela televisão?

1 Referia-se ao Jornal Nacional da Rede Globo.


Texto originalmente publicado no espaço Palavras, Películas e Cidades na plataforma de cultura colaborativa Obvious.


Vinícius Silva é poeta, escritor e professor, não necessariamente nesta mesma ordem. Doutor em planejamento urbano pelo IPPUR/UFRJ, cientista social e mestre em sociologia e antropologia formado também pela UFRJ. Foi professor da UFJF, da FAEDUC (Faculdade de Duque de Caxias), da Rede Estadual do Estado do Rio de Janeiro (SEEDUC) e atualmente é professor efetivo em sociologia do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Criou e administra o Blog PALAVRAS SOBRE QUALQUER COISA desde 2007, e em 2011 lançou o livro de mesmo nome pela Editora Multifoco. Já trabalhou em projetos de garantia de direitos humanos em ONG's como ISER, Instituto Promundo e Projeto Legal. Nascido em Nova Iguaçu, criado em Mesquita, morador de Belford Roxo. Defensor e crítico do território conhecido como Baixada Fluminense.
   

Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons.

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Vinícius Silva é poeta, escritor e professor, não necessariamente nesta mesma ordem. Doutor em planejamento urbano pelo IPPUR/UFRJ, cientista social e mestre em sociologia e antropologia formado também pela UFRJ. Foi professor da UFJF, da FAEDUC (Faculdade de Duque de Caxias), da Rede Estadual do Estado do Rio de Janeiro (SEEDUC) e atualmente é professor efetivo em sociologia do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Criou e administra o Blog PALAVRAS SOBRE QUALQUER COISA desde 2007, e em 2011 lançou o livro de mesmo nome pela Editora Multifoco. Possui o espaço literário "Palavras, Películas e Cidades" na plataforma Obvious Lounge. Já trabalhou em projetos de garantia de direitos humanos em ONG's como ISER, Instituto Promundo e Projeto Legal. Nascido em Nova Iguaçu, criado em Mesquita, morador de Belford Roxo. Lançou em 2015, pela Editora Kazuá, seu segundo livro de poesias: (in)contidos. Defensor e crítico do território conhecido como Baixada Fluminense.

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