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sábado, 21 de março de 2015

A construção do ser masoquista: A falácia do caso Cícero, por Igor Rodrigues


Igor Rodrigues fez um curso que dei na UFJF que se chamava "Introdução à Sociologia para a Administração". Dei um curso de Introdução à Sociologia, porque nunca soube para que servia "uma sociologia para a administração". Seu olhar cuidadoso e curioso diante do tema dos moradores de rua reflete sua postura sempre brilhante e indagadora durante o curso ministrado.

Neste caso, e em outros trabalhos, Igor chama a atenção para a naturalização da percepção de "invisibilidade" no que tange a situação da população de rua, pois mais do que ressaltar o não-olhar sobre estas pessoas, este termo-uso acaba, por vezes, a mascarar todo o processo de "visibilidade" que esta população sofre. Visibilidade pautada pela violência estatal, pela criminalização e pela midiatização estereotipada.   


Uma das ideologias presentes no senso comum e mesmo em outras esferas de pensamento ditas mais elaboradas, que reforça a injusta visão meritocrática no entremeio da desigualdade social, é o mito do ser masoquista, isto é, a interpretação do sofrimento e da necessidade como uma escolha do indivíduo, na ótima expressão "mora na rua porque quer". Encontra-se aqui a ideia de um morador de rua erudito, que detém certo capital cultural e escolhe a rua por uma questão de liberdade. Essa questão também tem relação com a percepção de classes como divisão econômica ou da pobreza somente enquanto desprovimento de capital econômico. Muitos trabalhos científicos se confundem com o romance “O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Roterdã”, de Evandro Affonso Ferreira, no qual a personagem/narrador em razão de uma desilusão amorosa resolve “abandonar o mundo” e ir morar na rua. Essa retórica “romântica” de apontá-los como pessoas livres que escolheram na rua um exercício de liberdade, inclusive defendendo o “direito de morar na rua”, é uma valorização ingênua da exclusão e culmina por transformá-la em contestação social. É o caso do antropólogo e cientista político James Scott (2009), em “The Art of Not Being Governed”. Ele diz que é preciso rever a história civilizatória branca e européia e pensar que determinadas populações, mais do que serem “deixadas para trás”, podem estar deliberadamente, em determinadas condições, recusando-se a ser incorporadas em recursos e programas estatais, nas suas lógicas de fixação e controle das mobilidades. 

O que chamarei de “caso Cícero” é a regra medida pela exceção; casos individualizados, e não as relações institucionais, históricas e políticas que engendram a construção dessa população como uma problemática social. Ainda que reconhecendo a desigualdade de oportunidades, a “história de superação” surge como forma mais invisível de legitimar a escolha masoquista, pois, a vontade do indivíduo é o que determina sua condição presente e futura. Essa forma pode ser percebida na reportagem publicada pelo portal G1 no dia 04 de setembro de 2014, intitulada “Com livros achados no lixo, morador do DF aprende a ler e se torna médico: Órfão aos 2 anos, ele cresceu no Chaparral e buscava comida pelas ruas. Cícero conheceu obras de Bach, Beethoven e Kafka por meio dos descartes.”:

Órfão de pai aos 2 anos e tendo a mãe alcoólatra e um dos sete irmãos traficante, o médico de Brasília Cícero Pereira Batista, de 33 anos, conseguiu vencer as adversidades estudando a partir de livros que retirava do lixo. Ainda criança, ele saía do Chaparral, onde a família mora até hoje, e percorria 20 quilômetros todos os dias pelas ruas de Taguatinga em busca de comida. Junto com as sobras de alimentos descartados no lixo, Batista recolhia todos os livros que encontrava e vinis de Beethoven e Bach, atualmente suas inspirações. Ele se formou há menos de três meses e agora sonha em abrir um consultório.


O caso Cícero demonstra que a condição de morador de rua não é irreversível. Entretanto, o que mais chama atenção é como essa reversibilidade é tão difícil, exigindo um esforço sobre-humano, de um verdadeiro super-homem. Ela é louvada como uma “ilha de dignidade”, virando notícia de ampla repercussão em um jornal de âmbito mundial. Na outra ponta da corda, quando um indivíduo de classe média vira morador de rua, como “mendigo-gato”, “modelo craqueira”, entre outros, é tomado como algo escandaloso. O mendigo gato é um caso jornalístico emblemático acontecido no ano de 2013: Rafael Nunes, que morava nas ruas há cerca de um ano, foi fotografado enrolado em uma coberta em frente à Catedral Basílica na cidade de Curitiba – PR; após a publicação da fotografia nas em redes sociais, descobriu-se que Rafael era um ex-modelo fotográfico. Houve então, uma comoção, inclusive midiática, pelo caso do “mendigo gato”; empresários, donos de clínicas de reabilitação auxiliaram na recuperação de Rafael – não simplesmente por sua beleza, mas pelo fato de que aquele era um indivíduo digno de credibilidade, principalmente, por sua trajetória de classe e seu reconhecimento como um par


Os moradores de rua, diversas vezes, são tratados como uma espécie de fênix, isto é, como “portadores da capacidade humana de fazer frente às adversidades da vida, superá-las e sair delas fortalecidos ou inclusive transformados.”, como pensa Grotberg (1996). O caso Cícero é utilizado pelo senso comum e/ou pela mídia como exemplo de superação baseada na força de vontade do indivíduo: “se ele conseguiu, nada impede que os outros consigam”, como se o morador de rua representasse uma questão individualizada, “os vários e possíveis Cíceros”, dos quais se valem, portanto, da exceção para deslegitimar a regra. 


REFERÊNCIAS:

FERREIRA, Evandro Affonso. O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Roterdã. Rio de Janeiro: Record, 2012.
GROTBERG, E. H. Guia de promoción de la resiliencia en los niños para fortalecer el espirito humano. La Haya, Fundación Bernardvan Leer, 1996.
SCOTT, James C. The art of not being governed: An anarchist history of upland Southeast Asia. New Haven, CT: Yale University Press, 2009. 




Igor Rodrigues é doutorando em ciências sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Estuda moradores de rua há mais de 4 anos. Gosta de rock, anos 80, Journey, Scorpions, Queen. Gostaria de ter tido uma banda (preferencialmente de sucesso). Tem saudades da época que não tinha saudades de época alguma (quando um kinder ovo era seu objetivo de vida).







Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons.

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O autor

Vinícius Silva é poeta, escritor e professor, não necessariamente nesta mesma ordem. Doutor em planejamento urbano pelo IPPUR/UFRJ, cientista social e mestre em sociologia e antropologia formado também pela UFRJ. Foi professor da UFJF, da FAEDUC (Faculdade de Duque de Caxias), da Rede Estadual do Estado do Rio de Janeiro (SEEDUC) e atualmente é professor efetivo em sociologia do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Criou e administra o Blog PALAVRAS SOBRE QUALQUER COISA desde 2007, e em 2011 lançou o livro de mesmo nome pela Editora Multifoco. Possui o espaço literário "Palavras, Películas e Cidades" na plataforma Obvious Lounge. Já trabalhou em projetos de garantia de direitos humanos em ONG's como ISER, Instituto Promundo e Projeto Legal. Nascido em Nova Iguaçu, criado em Mesquita, morador de Belford Roxo. Lançou em 2015, pela Editora Kazuá, seu segundo livro de poesias: (in)contidos. Defensor e crítico do território conhecido como Baixada Fluminense.

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